Usando a natureza como modelo: do salgueiro à aspirina



A natureza e em particular algumas plantas têm sido utilizadas pelo Homem desde a mais remota antiguidade para o tratamento ou prevenção de doenças. A medicina convencional ocidental requer a utilização de compostos activos puros e, apesar destes terem inicialmente sido muitas vezes isolados de plantas, actualmente os medicamentos são quase sempre produzidos pela indústria farmacêutica. Existem várias razões para isto acontecer: o material vegetal de onde foi isolado o composto é difícil de obter; o composto está presente no material vegetal em quantidades muito pequenas ou é instável uma vez isolado; a actividade farmacológica do composto puro é relativamente baixa ou induz efeitos secundários indesejáveis. Nestas situações os cientistas determinam que parte da estrutura química do composto é importante para a sua actividade biológica (esta parte é denominada farmacóforo), e que substituições na composição química podem ser feitas para aumentar a actividade biológica e eliminar efeitos secundários indesejados. São efectuados estudos no laboratório, em que são produzidos vários compostos semelhantes ao composto original isolado da planta e assim, consegue-se estabelecer a forma como actividade biológica varia com a estrutura química.
Este foi o modo como foram introduzidos no mercado vários medicamentos, o mais famoso dos quais foi a aspirina, a primeira droga sintética a ser comercializada e o início da indústria farmacêutica. No início do século XIX foi isolado o ácido salicílico da casca do salgueiro, que era utilizada no tratamento do reumatismo e de diferentes quadros clínicos que envolviam dor. De imediato foi reconhecido que era possível utilizar o ácido salicílico para diminuir a dor, mas também que eram necessárias grandes quantidades de um produto que tinha sabor desagradável e era mal tolerado no estômago. Numa tentativa de eliminar estes problemas, Félix Hoffmann que trabalhava para a Friedrich Bayer & Co na Alemanha, sintetizou em 1899 o ácido acetilsalicílico que, sendo um derivado do ácido salicílico, não apresentava os problemas do composto original. Apesar de só cerca de 100 anos mais tarde se ter compreendido o modo de como actua a aspirina no corpo humano, foi então possível, com base na estrutura química da aspirina, o desenvolvimento de outros fármacos com actividade semelhante como o ibuprofeno (princípio activo do anti-inflamatório Brufen tão utilizado em pediatria).
A cocaína é provavelmente reconhecida por todos como uma droga, sendo frequente a apreensão desta substância pelos agentes de segurança. A cocaína é obtida da folha do arbusto da coca (Erytbroxylon coca) proveniente do planalto andino na América do sul. O uso desta planta pela população indígena é associado ao combate da fadiga, originada pela baixa concentração de oxigénio a que estão sujeitos devido à elevada altitude do planalto andino. A cocaína foi isolada no final do século XIX, e imediatamente foram reconhecidos as suas propriedades de estimulante do sistema nervoso central (SNC), agindo sobre ele com efeito similar ao das anfetaminas. A cocaína podia também actuar como anestésico já que bloqueia a transmissão dos nervos até ao cérebro. No entanto, os efeitos indesejados no SNC levaram a que fossem procurados outros compostos cuja estrutura química é baseada na cocaína, mas que não apresentam as suas contra-indicações. Foram assim desenvolvidos compostos como a lidocaína, usada frequentemente hoje em dia em anestesia local.
Alguns fármacos isolados das plantas estão presentes no material vegetal em quantidades muito pequenas, sendo por isso necessário encontrar alternativas. A primeira alternativa possível seria efectuar a síntese química do composto mas, por vezes, a sua estrutura química é tão complexa que se torna inviável a síntese total do ponto de vista económico. Assim, os cientistas voltam a recorrer à natureza para encontrar percursores, compostos que apresentam na sua estrutura química parte da estrutura do fármaco, e que tornam possível, através de algumas de reacções químicas e processos biotecnológicos (envolvendo microrganismos) relativamente simples, a produção industrial de grandes quantidades do fármaco. Há vários exemplos de fármacos produzidos por hemi-síntese, i.e, parte da sua estrutura é derivada da natureza e outra parte é produzida no laboratório. Os esteróides, que incluem compostos como as hormonas sexuais ou os corticosteróides são produzidos na indústria farmacêutica a partir de compostos isolados de inhames mexicanos (Dioscorea spp.) e de outras plantas.
A revolução em termos de comportamentos sexuais ocorrida nos anos 60 não teria sido possível sem a descoberta dos compostos percursores na Dioscorea que permitem obter de uma forma relativamente simples e com baixos custos os esteróides necessários para produção da pílula anti-concepcional. Um outro exemplo actual é o paclitaxel (Taxol™), usado no tratamento de cancro do ovário, mama e pulmão e que foi inicialmente isolado na casca de uma espécie de teixo que cresce na floresta do Pacífico noroeste, Taxus brevifólia. O facto de ser impraticável o uso da droga directamente extraída desta planta levou à pesquisa e descoberta de um composto semelhante nas folhas do teixo europeu, Taxus baccata, o docetaxel, que pode ser facilmente convertido no Taxol, tornando possível a sua utilização deste fármaco na terapia oncológica.


Por

Cristina Dias* 
Dora Teixeira**

* Profª Dep. Química da ECTUE e Centro de Química de Évora (CQE)
** Profª Dep. Química da ECTUE e Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas (ICAAM)

Publicado no Jornal "Diário do Sul" em 18/6/2007
Disponível no Jornal On-Line da Universidade de Évora (UELine)



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