A Química "doce" do vinho


A definição enológica e legal designa o vinho como um produto natural obtido exclusivamente pela fermentação alcoólica, total ou parcial, de uvas frescas ou do mosto de uvas frescas.
O vinho é, desde tempos longínquos, um elemento fundamental da cultura gastronómica. Era já um hábito alimentar entre os sicilianos, no ano 2000 a.C., assim como dos Egípcios. Na Ilíada e na Odisseia, Homero cita sempre o vinho nos banquetes dos seus heróis. Os Romanos iriam transportar consigo a técnica da cultura da vinha durante a expansão do seu império. No século III d.C. as zonas vinícolas da Europa (Vitis Vinífera) eram sensivelmente as mesmas de hoje.
O vinho existe, portanto, há muito mais tempo do que a Química considerada como ciência moderna.
A Química do vinho é extremamente complexa e ainda hoje não é totalmente conhecida. Os avanços tecnológicos desta ciência permitiram progressos gigantescos na compreensão dos processos naturais que se produzem no interior do vinho.
No início do século XX apenas eram conhecidos pouco mais de meia dúzia de compostos químicos constituintes do vinho, nos anos 40 cerca de 50 e, actualmente, já foram identificados mais de 600. A presença de tão grande quantidade de compostos químicos no vinho aliada à sua grande diversidade ilustra, sem margem para dúvidas, o seu elevado grau de complexidade.
Os constituintes do vinho podem ser agrupados segundo a perspectiva da sua contribuição para os factores organolépticos (sabor). Em muitos casos verifica-se uma correspondência directa entre as características sensoriais do vinho e os compostos químicos que lhe dão origem. Outras vezes, um mesmo composto ou família de compostos influi sobre aspectos diversos e totalmente distintos do ponto de vista da análise sensorial.
Assim podem ser considerados seis grupos principais de compostos, nomeadamente, do paladar doce, do paladar ácido, do paladar salgado, da cor, da nutrição e do aroma.
O paladar doce está cargo de compostos como açúcares, álcoois e poliois. Os açúcares são produtos da fotossíntese nas folhas da videira e existem naturalmente nos mostos e nos vinhos. Dividem-se em dois grupos:

- Açúcares simples ou açúcares redutores: Hexoses e Pentoses
- Açúcares complexos: Sacarose e Amido

Qualitativamente as hexoses são os constituintes mais importantes pois são estes açúcares que se transformam em álcool (etanol), por acção fermentativa das leveduras durante o processo de vinificação, determinando decisivamente o teor alcoólico dos vinhos obtidos. As pentoses não são fermentáveis pelas leveduras daí os vinhos conterem sempre quantidades apreciáveis destes açúcares.
Os açúcares complexos como a sacarose e amido são substâncias de reserva glúcida e não abundam na uva. A presença de sacarose num vinho evidencia que este sofreu uma Chaptalizalção ou aumento do grau alcoólico, por adição do referido açúcar. Refira-se que, em Portugal, este procedimento não é autorizado e que a detecção deste açúcar num vinho revela de forma segura um enriquecimento fraudulento.
Os principais objectivos do doseamento dos açúcares redutores nas uvas, nos mostos e nos vinhos são:

- Avaliar o tempo óptimo de vindima: O doseamento dos açúcares nas uvas permite acompanhar a sua maturação e estabelecer a data provável para a sua colheita.
- Determinar o potencial grau alcoólico do vinho: O doseamento dos açúcares do mosto permite determinar o grau alcoólico latente e prever o seu enriquecimento, caso seja necessário e legal.
        - Seguir e detectar o terminus da fermentação alcoólica: Considera-se que esta se completa quando o conteúdo em açúcares redutores é inferior a 2 gramas por litro.
        - Controlar o açúcar residual no vinho visando a eliminação do fenómeno de refermentação e, consequentemente, problemas de turvação.
        - Classificar os vinhos e os vinhos espumantes de acordo com a correspondência apresentada na tabela seguinte:

Classificação
Quantidade de açúcares redutores (gramas/litro)
Vinho

Seco
£ 4
Semi seco
£ 12
Semi doce
12 – 45
Doce
³ 45
Vinho Espumante

Extra bruto
0 – 6
Bruto
£ 15
Extra seco
12 – 20
Seco
17 – 35
Semi seco
33 – 50
Doce
> 50

O doseamento dos açúcares redutores do vinho é efectuado por recurso a uma técnica de análise química, relativamente simples, designada por titulação redox.
É de salientar que os alunos da licenciatura em Química da Universidade de Évora têm a possibilidade determinar o teor de açúcares redutores em amostras de vinho caseiro e comercial.

Glossário de termos vinícolas

Enologia - Conjunto das ciências e técnicas ligadas à produção, análise e melhoramento do vinho. Estuda todos os processos de transformação das uvas em vinho.

Fermentação Alcoólica – Processo microbiológico através do qual as leveduras (seres vivos unicelulares) obtêm a sua energia vital, por transformação do açúcar disponível em álcool, nomeadamente, etanol. A transformação dos açúcares em etanol faz-se através de uma série complexa de mais de 30 reacções químicas sucessivas, cada uma das quais é catalisada por um enzima específico fazendo parte da ferramenta biológica das leveduras. Cada uma destas reacções também produz outros produtos secundários cuja concentração é extremamente baixa quando comparada com a do etanol.

Mosto - Sumo da uva que se obtém por esmagamento das uvas. Após a fermentação alcoólica o mosto transforma-se em vinho.

Vitis Vinifera - Nome genérico da vide Europeia (independentemente da casta). Os outros tipos de vide que não pertencem à Vitis Vinifera são híbridos e designam-se por americano.

Vinificação - Conjunto de operações necessárias para transformar as uvas em vinho.

Chaptalização - Processo de adição de açúcar ao mosto para aumentar o grau alcoólico do vinho. Este processo é autorizado por lei em alguns países, mas é proibido em Portugal.

Maturação - Período de amadurecimento das uvas, dura cerca de 45 dias. Durante este período a acidez vai baixando à medida que aumentam os teores de açúcar das uvas.

Teor alcoólico em volume ou grau alcoólico volumétrico, % vol – Volume de etanol (álcool etílico), em litros, contido em 100 litros desse vinho. Estes dois volumes são medidos à temperatura de 20ºC.

Bibliografia
- C. Galacho, “Doseamento dos açucares redutores no vinho por titulação redox – Iodometria” Provas de aptidão pedagógica apresentadas na Universidade de Évora, Évora, 1998.
- A. S. Curvelo-Garcia, "Controlo de Qualidade dos Vinhos: Química Enológica e Métodos Analíticos", Instituto da Vinha e do Vinho, 1988.
- Norma Portuguesa, NP 2223/1988
- Regulamentos da CEE 997/81 e 2333/92
- J. P. Alpuim, "Aprendendo a Química do Vinho", Boletim da Sociedade Portuguesa de Química, 65 (1997) 13-27.
- C. Navarre, "Enologia - Técnicas de Produção de Vinho", Publicações Europa América, Lda., Lisboa, Abril 1997.
- D. Delanoe, C. Maillard e D. Maisondieu, " O Vinho - Da Análise à Elaboração", Publicações Europa América, Lda., Lisboa.
- Emile Peynaud, "Conhecer e Trabalhar o Vinho", LTC Editora Portuguesa de Livros Técnicos e Científicos, Lisboa, 1982.
- http://www.ivv.min-agricultura.pt/regulamentacao/index.html (Instituto da Vinha e do Vinho).


Por
Cristina Galacho*

* Profª Dep. Química da ECTUE e Centro de Química de Évora (CQE)

Publicado no Jornal "Diário do Sul" em 1/3/2007
Disponível no Jornal On-Line da Universidade de Évora (UELine)


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