Quiralidade e Medicina - Fármacos no espelho


O termo quiralidade está intimamente relacionado com a Química, contudo, é um fenómeno que se manifesta em tudo o que é Vivo. Se por um lado a explicação científica para este fenómeno é mais do que conhecida, já a sua origem permanece um mistério. Se existe nos compostos químicos associados à Vida, então deverá ter surgido antes desta, pois só assim a pôde condicionar e construir tal e qual a conhecemos. Para melhor compreender esta propriedade, de algumas moléculas, a melhor forma é compara-la com as mãos. Se repararmos, as nossas mãos são muito semelhantes, contudo, não são sobreponíveis uma na outra. Imaginando que entre elas existe um espelho, facilmente se chega à conclusão que ambas são a imagem uma da outra. Desta forma, diz-se que as nossas mãos são quirais e possuem uma propriedade chamada quiralidade. Esta propriedade é extensível ao mundo da química uma vez que muitas moléculas também possuem quiralidade.
Podemos dizer que um objecto é quiral se e só se a sua imagem no espelho não for sobreponível. Torna-se então claro que o conceito de quiralidade refere-se a uma propriedade espacial dos objectos e moléculas. Como se pode ver pela figura, as mãos são a imagem no espelho uma da outra, no entanto não são sobreponíveis. Moléculas que são imagem no espelho, não sobreponível, uma da outra são chamadas de um par de enantiómeros.
No mundo da química, os maiores exemplos de quiralidade vêm da natureza, sendo esta a principal fornecedora de matéria-prima para a criação de novos fármacos. Exemplos disso são os aminoácidos, açúcares, proteínas, terpenos, entre outros. As suas formas naturais são, em geral, enantiomericamente puras (apenas um dos enantiómeros está presente). Um caso flagrante é o limoneno. Este composto possui um centro quiral que lhe confere algumas propriedades interessantes. Um dos enantiómeros, (S)-limoneno é responsável pelo cheiro característico do limão; o outro, (R)-limoneno, por sua vez, é responsável pelo cheiro da laranja. Trata-se do mesmo composto com a mesma fórmula química, as mesmas propriedades químicas e, no entanto, o facto de serem enantiómeros confere-lhes características diferentes.
Outros exemplos são o caso da febrifugina (composto uniquiral relativamente simples utilizado, na antiguidade, no tratamento da malária); morfina e codeína (alcalóides extraídos da planta papaver somniferum utilizados como analgésicos opióides); a quinina (provavelmente o composto com maior relevância histórica devido ao seu papel na luta contra a malária); ácido ascórbico (vitamina C); tetrahidrocanabinal (principio activo da marijuana); nicotina; atropina (extraída da beladona possui efeitos psicoactivos, dependendo da dose pode ser fatal, contudo, é útil na medicina oftalmológica).
A quiralidade foi compreendida pela primeira vez por um químico francês muito famoso que dava pelo nome de Louis Pasteur (responsável pela criação do processo de pasteurização). Pasteur, certamente um homem muito paciente, conseguiu, pela primeira vez separar manualmente os dois enantiómeros do sal do ácido tartárico, o que lhe permitiu chegar à conclusão que, apesar de parecerem o mesmo composto, existiam diferenças importantes entre eles.
Foi já no século XX que aconteceu um dos episódios mais dramáticos da história dos compostos quirais com o trágico caso da Talidomida. Este fármaco é um composto quiral onde apenas um dos enantiómeros possui propriedades sedativas. A outra forma está associada a propriedades teratogénicas (responsável por malformações nos fetos). Estima-se que mais de 10000 crianças foram afectadas por este fármaco e 40% destas morreram no primeiro ano de vida.
Contudo, não existem apenas maus exemplos, também há muitos casos de sucesso da aplicação de compostos quirais como fármacos, como por exemplo o Ibuprofeno, utilizado para uma generalidade de dores possuindo ainda propriedades anti-inflamatórias; e o omeprazole, um dos fármacos mais vendidos em todo o mundo, utilizado no tratamento de problemas do estômago.
No ano de 1999, a venda de substâncias contendo apenas um dos enantiómeros, em todo o mundo, chegou aos 78 mil milhões de euros, mais de 16% do que no ano anterior. Este negócio significava, cerca de 32% do mercado global dos fármacos, o que mostra a sua importância. Segundo alguns especialistas este comércio tem tendências para continuar a crescer. Para 2008, espera-se que o lucro proveniente de fármacos quirais enantiomericamente puros seja de aproximadamente 140 mil milhões de euros.
Sem dúvida, os fármacos quirais têm especial relevância na medicina e estão aqui para ficar.

Por

Carlos Laginhas*

* Investigador do Centro de Química de Évora (CQE)

Publicado no Jornal "Diário do Sul" em 28/02/2008
Disponível no Jornal On-Line da Universidade de Évora (UELine)


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