Uma Química Picante

   
 “-Esta feijoada está mesmo picante… Tal como eu gosto”. Esta poderia ser uma observação de alguém com um gosto especial por…feijoada, por um lado, e de sensações picantes, por outro. Refiro “sensação” e não “sabor” porque a sensação que experimentamos ao ingerir alimentos picantes não é realmente um sabor, mas uma dor como resposta das terminações nervosas existentes na boca a um estímulo provocado pelo picante. É, contudo, uma dor relativamente suportável (varia de pessoa para pessoa…), ou seja, um “ar de dor” ou, melhor ainda e retirando a proposição à expressão, um ardor… Sim, ardor será o termo mais apropriado porque o que sentimos é, de facto, uma sensação quente.
De que forma a química condimenta este assunto? É que o estímulo atrás referido é químico, sendo provocado por moléculas existentes nos condimentos picantes. Estas ditas moléculas interagem quimicamente com as terminações nervosas existentes na nossa boca. Estas enviam a informação ao cérebro e este responde imediatamente provocando as sensações que todos nós já sentimos. Alguns farão uma cara de comprazimento, outros demonstrarão algum incómodo, outros farão movimentos verticais com a mão à frente da boca (aberta) e sorverão algum ar para arrefecer o seu tempero, perdão, temperamento e outros recorrerão ao primeiro líquido que estiver à sua frente para apagar o mar de chamas em que se tornou a sua cavidade bucal…

Mas, afinal, de que substâncias picantes estamos a falar? Duas moléculas que recebem o óscar por este filme são a piperina e a capsaicina. A piperidina possui átomos de carbono (C), hidrogénio (H), oxigénio (O) e azoto (N) e tem a fórmula química C17H19O3N. É um alcalóide, sendo o componente activo (entre 5-9 %) das pimentas branca e preta. Quando pura apresenta-se sob a forma de um pó amarelado. A capsaicina é uma das moléculas da família das capsaicinóides, de fórmula química C18H27O3N. Quando pura apresenta-se sob a forma de cristais brancos. Está presente em várias espécies de plantas do género Capsicum, incluindo o chili verde e vermelho e o Capsicum annuum. A variedade mais comum desde último é o pimento mas há outras variedades das quais derivam, nomeadamente, a paprika e de onde se prepara o conhecido molho Tabasco. Veja as estruturas químicas destas moléculas na figura.
 
Estrutura da Capseicina e Piperina
A acção da capsaicina (e provavelmente da piperina) no organismo parece ter vários componentes. Estimula a secreção de saliva, o que ajuda a digestão. Também estimula o movimento do colon ajudando à passagem da restante comida pelos intestinos. No ânus causa prurido e uma sensação agradável de calor durante a defecação. Estas sensações agradáveis não são exclusivas na defecação. Ainda bem… Poderemos ter uma sensação de prazer ou contentamento após ingerir comida picante. Esta sensação deve-se à produção de endorfinas no cérebro que são substâncias utilizadas pelos neurónios na comunicação do sistema nervoso, ou seja, neurotransmissores. Estas endorfinas têm características analgésicas (combatem a dor). Ainda se lembra da dor sentida na boca pelo contacto com as substâncias picantes? Pois, o cérebro estimula a produção destas moléculas para contrariar essa dor… As endorfinas também são produzidas, nomeadamente, durante o exercício físico, no amor e no orgasmo e visam relaxar e dar prazer, despertando uma sensação de euforia e bem-estar. Quanto mais forte ou maior a quantidade de picante ingerido, maior a quantidade de endorfinas produzidas e maior o prazer final. Já se está a ver a relação que se costuma fazer entre a ingestão de comida picante e a possível apetência para uma relação (digamos que) mais colorida e despida de preconceitos…
A intensidade do ardor provocado pelos frutos do género Capsicum é medida tradicionalmente em unidades Scoville. Quanto maior o valor maior a quantidade de capsaicina presente. Só para se ter uma ideia, aqui ficam alguns números só por curiosidade: pimento (100); Tabasco (30.000); malagueta (60.000-100.000); chili de Habañero, Cuba (300.000); capsaicina pura (16.000.000).
Recordemos o que foi dito atrás sobre a utilização de qualquer líquido que estiver à mão para acalmar o ardor provocado pelas moléculas de que estamos a falar, nomeadamente a capsaicina. Pois bem, ao contrário do que se possa pensar, não pode ser um líquido qualquer… Já foram feitos estudos no sentido de saber qual será o melhor líquido-bombeiro. Entre os estudados estão, nomeadamente, a água, o leite e as bebidas alcoólicas. Sabe qual o vencedor? Água? Não… O leite! Acredita-se que a caseína (uma proteína do leite) funciona como que um detergente para a capsaicina, ou seja, ajuda a retirá-la dos receptores nervosos da boca. Outros produtos que possuem caseína e que podem ajudar à função são o chocolate de leite, as nozes e leguminosas, como o feijão. Qual é o problema da água? É que a capsaicina é pouco solúvel e o alívio é apenas temporário. Já é mais solúvel em etanol (o álcool mais abundante das bebidas alcoólicas) pelo que, não havendo leite por perto, é preferível bochechar a boca com um copo de whisky, vodka ou aguardente (com o líquido propriamente dito, não o copo…). A cerveja não ajuda muito pois 90-95 % da bebida é água… Outros apaziguadores dos ardores são produtos com elevados teores em gorduras já que a capsaicina também é aí relativamente solúvel. Além do já referido leite (gordo, de preferência) temos os seus derivados como o queijo, iogurte e gelado de nata. Este último tem a vantagem adicional de refrescar a boca. Alimentos com elevados teores de açúcares como as frutas, o mel, as cenouras, bebidas doces ou o próprio açúcar do pacote podem ajudar. Aqui, a razão é que os açúcares se ligam às terminações nervosas da boca de forma mais eficaz que a capsaicina, deslocando-a e inibindo o seu efeito. Também os ácidos podem cortar o efeito picante. Experimente o vinagre (está bem, talvez não seja a melhor ideia…) ou sumo de limão ou de lima. Que tal uma limonada com muito açúcar?
Em conclusão, consoante a sua sensibilidade ou efeito que quer ver provocado no seu organismo ingira comida picante com moderação…ou talvez não… Em qualquer dos casos, agora já pode dizer aos seus amigos ou familiares quando tiver comida picante por perto: “Lá vou eu ingerir um pouco de capsaicina e/ou piperina para induzir o meu cérebro a segregar uma dose de endorfinas para o meu bem-estar…”. Ah! E não se esqueça de ter um copo de leite, um pacotinho de açúcar ou uma bebida alcoólica forte à mão! Para o que der e vier…

Bibliografia
Peter Atkins, “Atkins’ Molecules” 2nd edition, Cambridge University Press 2003
Penny Klatell, http://myfoodmaps.com (consulta de 28 de Fevereiro 2012)
“A Perk of Our Evolution: Pleasure in Pain of Chilies”, New York Times, September 20, 2010

Por
Paulo Mendes*

* Prof. Dep. Química da ECTUE e Centro de Química de Évora (CQE)

Publicado no Jornal "Registo", Ed. 198 de 15/03/2012
Disponível no Jornal On-Line da Universidade de Évora (UELine)

2 comentários:

  1. Para aliviar o picante o meu conselho é mousse de chocolote, ou baba de camelo, ou ... ambas, se ainda houver estômago. ;-)

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  2. Agora percebi a história da manteiga aliviar o picante! ;)

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