Outro Sangue I


Nas últimas décadas, o envelhecimento da população levou a uma redução drástica do número de potenciais dadores de sangue, mas também a um aumento da necessidade de transfusões. Por outro lado, o surgimento de algumas doenças infecciosas, como a SIDA, resultou num escrutínio mais rigoroso e um controlo mais apertado da qualidade do sangue e dos produtos sanguíneos para transfusão. O sangue é, hoje em dia, um bem escasso. Seria pois vantajoso que pudesse, ainda que de forma temporária, ser substituído por outro produto que cumprisse uma das suas funções o transporte de oxigénio através do organismo em situações de carência aguda de oxigénio nas células, como enfarte do miocárdio ou choque hemorrágico. A Química também entra aí.
Os produtos mais promissores para potencial aplicação como substitutos do sangue (transportadores de oxigénio) baseiam-se em perfluorocarbonetos (PFC), em geral, merecendo os perfluoroalcanos (PFA) particular destaque.
Os alcanos são uma família de hidrocarbonetos (compostos de carbono e hidrogénio) em cujas moléculas só existem ligações simples (não há duplas nem triplas) e que possuem, como fórmula geral, CnH2n+2, sendo n um número inteiro. As fórmulas moleculares dos sucessivos membros da família obtêm-se substituindo o n por números inteiros em ordem crescente. Estruturalmente, as moléculas de alcanos possuem um “esqueleto” constituído por átomos de carbono ligados quimicamente entre si e cada um deles ligado a tantos átomos de hidrogénio quantos os necessários para completar a valência característica do carbono (4 átomos ligados a si), numa geometria tetraédrica em torno de cada átomo de carbono. Um exemplo de um alcano linear e de um alcano ramificado podem ver-se na figura 1 (a e b).

Figura 1. Fórmula de estrutura e esquema 3D de heptano (a) e iso-octano (b)


 O estado de agregação com que os alcanos lineares se apresentam nas condições normais de pressão e temperatura depende do número de átomos de carbono da cadeia. Assim, os alcanos com n até 4 são gasosos; os que têm n entre 5 e 17 são líquidos e para n igual ou superior a 18, os alcanos são sólidos. Como se sabe, os alcanos são os principais componentes do petróleo e do gás natural, revestindo-se pois de uma importância civilizacional transcendente, com as consequências que todos conhecemos.
Tão ou mais interessantes que os alcanos são os perfluoroalcanos, família de compostos orgânicos em quase tudo semelhante à primeira, mas onde átomos de flúor tomam o lugar dos átomos de hidrogénio na estrutura carbonada. Na figura 2 exemplifica-se um dos elementos da família, o perfluorohexano. As dimensões do flúor (raio covalente de 57 picómetros*, comparado com 31 picómetros do hidrogénio), o seu peso atómico médio relativo (18,9984 face a 1,0079 para o hidrogénio) e sobretudo o facto de o flúor ser o elemento mais electronegativo da tabela periódica (a electronegatividade mede a tendência que cada átomo tem para “puxar” para si densidade electrónica quando ligado a outro) fazem com que os perfluoroalcanos possuam propriedades muito diferentes dos alcanos.

Figura 2. Fórmula de estrutura e esquema 3D à escala de perfluorohexano

Os PFA lineares são líquidos entre os 5 e os 9 átomos de carbono na sua cadeia, sendo gasosos abaixo de 5 e sólidos acima de 9. São mais inertes (ligações químicas mais fortes e protecção eficaz da cadeia carbonada) e mais voláteis (interacções intermoleculares mais fracas) dos que os alcanos correspondentes. Possuem uma estrutura molecular “torcida” e rígida, que os torna mais viscosos do que os alcanos, e fazendo com que, no caso dos líquidos, haja grandes espaços vazios entre as moléculas. Essa característica molecular está na base da potencial aplicação dos PFA como substitutos do sangue: a sua enorme capacidade para dissolver moléculas gasosas, sobretudo gases respiratórios, como oxigénio e dióxido de carbono. O oxigénio é 15 vezes mais solúvel em perfluorohexano do que em água e mais do dobro do que em hexano, por exemplo. Isto permite-lhes armazenar grandes quantidades de oxigénio e, eventualmente transportá-lo.
Como se não bastasse, a quantidade de oxigénio que é possível dissolver num dado volume de um PFA varia linearmente com a pressão parcial do oxigénio no meio circundante, o que torna possível “carregar” o líquido de oxigénio a pressões elevadas do gás e “descarregar” a pressões mais baixas.
Ora uma das funções do sangue no organismo é, para além de muitas outras (metabólica, regulatória, hemostática, defesa), transportar oxigénio dos pulmões, onde é recebido, para todas as células do corpo, onde ele é necessário para o metabolismo celular. Esse transporte é efectuado pela hemoglobina, proteína que, para além dos resíduos peptídicos, contém o grupo Hemo, complexo porfirínico centrado num átomo de ferro. É o átomo de ferro que, a altas pressões de oxigénio (nos pulmões) se liga ao oxigénio (por uma ligação covalente dativa), transporta-o através do corpo até às células e lá, a baixas pressões do gás, liberta-o, dada a natureza lábil (reversível) da ligação que estabelece. O dióxido de carbono (resultado do processo de respiração) faz o percurso inverso, usando o mesmo transportador.
Os pefluoroalcanos (e os PFC, em geral) são capazes de armazenar grandes quantidades de oxigénio e transportá-lo, podendo servir de transportador alternativo à hemoglobina. Esta capacidade foi provada de uma forma eloquente em 1966 por dois cientistas (Clark e Gollan), que conseguiram manter as funções vitais de um rato completamente submerso num PFC saturado de oxigénio. Estes compostos não reagem quimicamente com o oxigénio; apenas dissolvem o gás, numa mera manifestação de interacções físicas. São sintéticos, não ocorrem na natureza e são inócuos para o organismo. Este não os reconhece como seus, mas também não os rejeita, de tão “estranhos” que são. Possuem, como já se disse, as características ideais em termos de solubilidade de oxigénio e sua relação com a pressão de oxigénio aplicada, constituindo pois uma interessante possibilidade para substituição temporária do sangue.
Os PFA são por exemplo usados em ventilação líquida, no decurso da qual é aplicado líquido nos pulmões em caso de insuficiência respiratória, sendo que a elevada solubilidade do oxigénio no PFC permite uma oxigenação eficiente dos pulmões e a preservação da capacidade do órgão para fazer as trocas gasosas vitais.
A administração intravenosa destes compostos é que constitui um problema complicado, mas isso é assunto para outra conversa.

* 1 picómetro = 0,000000001 milímetros.

Por
Luís Martins*

* Prof. Dep. Química da ECTUE e Centro de Química de Évora (CQE)

Sem comentários:

Enviar um comentário